2º movimento Arts & Crafts?

Na Inglaterra de meados do século XIX um grupo de artistas, arquitetos, designers, escritores, artesãos e filantropos tinham em comum sua preocupação com a iminente perda de qualidade e, principalmente, de personalidade a que o design e o artesanato estavam sujeitos frente à crescente e assustadora industrialização.

O desejo de reavivar e restaurar a dignidade do artesanato tradicional e fazer com que as artes estivessem ao alcance de todas as pessoas independente de sua condição financeira, era o objetivo daquele grupo de idealistas.

Naquela época, o ideal de beleza pura e simples tinha como referência o artesanato da Idade Média, quando tudo, absolutamente tudo, passava pelas mãos dos artesãos e tinha como matéria prima elementos da natureza. O homem tinha uma comunhão total com o entorno e o mundo natural, vivendo e sobrevivendo graças a ele. Da diversão ao alimento, tudo era composto por algo que os cercava. O ritmo de vida era mais lento, respeitava os tempos da natureza e o a capacidade de produção do artesão. Se sabia esperar.

Imagem 1: Arts & Crafts

William Morris (1834-96) foi o designer, pintor, poeta e reformador social que mais voz deu ao movimento denominado Arts and Crafts, traduzido do inglês, Artes e Ofícios, a expressão máxima deste ideal, pois eram as Artes resgatadas pela tradição dos Ofícios medievais naquele momento, então, dentro de uma nova sociedade, com novos costumes, novas técnicas e, inevitavelmente, novos materiais.

O movimento deixou marcas profundas no pensamento da época, elevou o status do artesão e incentivou o respeito pelos materiais e tradições populares, e influenciou a estética posterior, dando asas a movimentos como o Art Nouveau e o Art Déco. Porém, aquele objetivo de tornar a boa arte e design acessíveis a todos não foi alcançado em sua grande parte. Frente à oferta de quantidade e preço da indústria, ter um produto “cozido a fogo lento” por um designer ou arquiteto tornou-se viável apenas para os que tinham dinheiro de sobra.

Depois de 160 anos de indústria a todo vapor e tecnologias que permitiram a criação de plásticos e outros produtos sintéticos não existentes originalmente na natureza, o mundo está muito diferente. William Moris e seus companheiros surtariam. A nanotecnologia permitiu façanhas inimagináveis há mais de um século atrás, e apontam para coisas assombrosas no futuro.
Nas décadas de 1940 a 1980, o deslumbre com o produto sintético que permitia a elaboração de produtos utilitários com formas jamais possíveis de se obter com a madeira, ou com uma leveza que o peso do ferro não permitia fascinou e cativou a população, dando ainda mais força à indústria pela então já consolidada enfermidade do consumismo.

Por fim, nos anos de 1990 o comércio entre os países estava aberto, organizado, forte e o intercâmbio não somente de tecnologia, mas também de cultura era algo que fazia arregalar os olhos do mais recatado ser humano. Muitas vezes se esquecia ou desvalorizava sua própria cultura, exaltando a de outros países —eram tempos de marketing!

Imagem 2: Containers e resíduos

Já na metade do século XX, o planeta entrou num processo incrivelmente rápido de deterioro, e os resíduos e poluentes invadiram todos os espaços terrestres, as águas de rios e mares, e o ar se tornoram insalubres em muitos lugares do mundo. Populações inteiras passaram a viver de restos deixados pelo consumismo desenfreado de uma massa que estava cega a respeito de sua responsabilidade sobre o planeta. As regras de mercado se reestruturaram complemente, e os grandes gigantes da indústria absorvem os pequenos, ou os obrigam a reinventar-se também. Surgem novos segmentos comerciais e outros desaparecem. Se desenvolve a consciência ecológica como disciplina científica e ética.

Mas já estamos na segunda década do século XXI. E agora, o que ocorre em nossas mentes, em nossa percepção de valor, nossa sensibilidade estética?
Em 1947, o historiador Fritz Saxl (1890-1948) deu uma conferência aos alunos da Reading University sobre seus estudos a respeito de iconografia, e dizia que “as imagens que têm um significado especial em seu momento e lugar, uma vez criadas, exercem um poder magnético de atração sobre outras ideias de sua esfera; que podem ser esquecidas de repente e serem recordadas novamente passados séculos de esquecimento”.

Pois é exatamente isto que dizia Saxl que eu creio que acontece em nosso presente momento. Por isso penso que estamos vivendo um novo movimento Arts and Crafts, porém, com toda a novidade de um mundo que não tem mais como dar marcha atrás em certos aspectos tecnológicos que fazem parte da cultura e da experiência estética acumulada.

Após 160 anos daquele pensamento de William Moris e seus companheiros a respeito da importância de se resgatar o aspecto mais artesanal, mais autêntico da própria cultura, e o contato com o natural está de volta dentro da mente de vários arquitetos, designers, pintores e artesãos de todo tipo.
Vemos desde empresas de grande porte até profissionais autônomos solitários se dedicarem a uma produção que envolva o seu cliente numa atmosfera que lhe traga o prazer do produto desenvolvido de forma artesanal, pensado especialmente para ele e que confira a sensação de contato com o natural, com sua própria origem, valorizando as tradições da sua cultura. Vou citar alguns exemplos nacionais e um internacional.

Empresas de grande porte, temos a Natura. Sua principal estratégia de marketing é de elaborar produtos de beleza que sejam sustentáveis. Ou seja, que na cadeia de produção, desde a obtenção da matéria prima que valorize a natureza local (em especial da Amazônia brasileira —castanhas, açaí, pitanga, etc.), passando pelas condições de contratação da mão de obra composta por pessoas que já faziam coleta ou beneficiamento daqueles produtos, fabricação, distribuição e descarte dos produtos, haja o cuidado com o meio ambiente, responsabilidade social e distribuição de renda o mais justa possível. Hoje ricos e não ricos podem e querem comprar seus produtos.
A chamada para sua nova fragrância diz o seguinte: “O processo produtivo de Ekos Alma é totalmente diferente. A priprioca foi envelhecida em madeira amazônica durante um ano, o que traz características olfativas diferenciadas a cada safra”. É uma forma de trazer o artesanato para a grande massa. Creio que esta empresa conseguiu o que William Morris queria.

Imagem 3: Natura

No âmbito da produção moveleira, a empresa catarinense FORMUS, liderada pela arquiteta Cláudia Silvestre, apostas há um bom tempo no seu slogan “movelaria + arte”. Também faz as seguintes chamadas à filosofia da empresa, conforme consta no seu site: “a casa é um ninho — Redesenhamos a lógica industrial ! Modelo de organização híbrida : craft + indústria | Trabalho colaborativo, “state of art” em design | Conceito de um fablab industrial | criação autoral | Produtos com relevância em conteúdo e história”. Ou seja, é uma carta de intenções que deixa claro que os produtos finais da empresa, apesar de conterem partes que são resultado de uma produção em larga escala, contém uma importante parte do processo que é feita à mão, personalizada para o cliente. É a necessidade da presença do trabalho artesanal, que é o único que consegue realmente dar aquele ar de exclusividade.

Imagem 4: Formus movelaria

A empresa espanhola GAN, tem um segmento de tapetes artesanais, para o qual seus designers criam pensando em usar matéria prima e mão de obra artesanal especializada, produzindo os tapetes no local onde os trabalhadores vivem para não ter que deslocá-los fora de seu contexto; e que a empresa não se torne uma copiadora de padrões e estilos de outras culturas. Também produzem com coletivos, como cooperativas de mulheres artesãs.
Em sua website, dizem: ” GAN es artesanía y diseño. GAN es una marca firmemente arraigada en el diseño y basada en los productos hechos a mano. Todos nuestros productos están fabricados en India, por expertos artesanos que sólo utilizan fibras naturales: algodón, lino, yute, seda y lana. El valor de lo que está hecho a mano, pausadamente, pieza a pieza, es lo que nos diferencia y nos define.”

Dei uma palestra sobre o mercado de tapetes, e usei a GAN como estudo de caso. Você pode ver o vídeo da palestra aqui: https://www.youtube.com/watch?v=e71JZxkvaRs

Imagem 5: GAN Tapetes

E das grandes e médias empresas, podemos passar para o pequeno artesão, aquele que desenvolve seu trabalho sozinho, às vezes para o consumidor direto pessoa física, às vezes para grandes empresas.
A ilustradora Agueda Horn trabalha para a grande empresa Folha de São Paulo, produzindo trabalhos em tecido, que incluem costura e colagem. A presença do trabalho informático já é uma constante em nossas vidas, e quase que nos acostumamos a ele. A volta de um trabalho tão ingênuo, porém cheio de esmero e criatividade, que usa materiais que estão disponíveis para qualquer um, põe de novo em nossa boca o gostinho pelo mais natural, o original, as raízes, e então nos sentimos pisando, literalmente, em terra firme (e não virtual).

Imagem 6: Ilustrações de Agueda Horn

Carlos Meira produz cartazes e todo tipo de publicidade com papel. Chama escultura em papel. Somente com papel, tesoura, cola e pintura, cria imagens realistas ou estilizadas para empresas e grandes grupos, com uma qualidade que só a mão humana poderia dar a um material tão delicado como papel. E por que grandes empresas que poderiam pagar por trabalhos de altíssima tecnologia informática decidem contratar um artesão que trabalha com um tempo inevitável de confecção, e só pode produzir um de cada vez? Não crê você também que há algo que nos chama continuamente às nossas origens como um poder magnético irresistível, tal e qual disse Fritz Saxl?

Imagem 7: Esculturas em papel de Carlos Meira

O trabalho artesanal traz consigo a ideia de que” foi feito para mim”. Resgata origens, resgata nossa identidade e nos aproxima do mais humano, do táctil, dos aromas, cores e sabores que a natureza oferece. E há pessoas que lideram empresas ou a si mesmos que estão preocupados com isso, tal e qual William Morris a meados do século XIX.

Por isso penso que vivemos um segundo movimento Arts and Crafts “à moda” do século XXI. Não desprezamos a tecnologia, a apreciamos. Mas sentimos falta de algo mais que não venha das máquinas. Sempre teremos nossa visão estética —desde as cavernas já decorávamos nosso entorno.
Este é o século em que vivemos, e que bom que não esquecemos do lado bom do passado. Soubemos repensá-lo, reinventá-lo e adaptar as nossas necessidades mais primitivas às demandas do presente. E creio que este é nosso novo momento de valorizar a individualidade, sem o fantasma da exclusão, pelo contrário, apoiando os coletivos que resgatam a pureza e a naturalidade dos sentidos humanos.

Origem das imagens e citações:
https://galeriasdeartebarcelona.com/arts-and-crafts/
https://freeimages.com.es
https://www.natura.com.br/
http://formus.com.br/
https://www.gan-rugs.com/es/gan-handmade/
http://aguihorn.blogspot.com/
https://www.carlosmeira.com/

E também: DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

(2) Comentários

  • Claudia silvestre 25 de outubro de 2019 @ 21:29

    Cara Pilar, que alegria e honra sermos objeto de atenção e estudo .
    Com seu pensamento original e estruturado nos revela cenários promissores. Bravo 👏🏻
    Afetuoso abraço, C.

    • Maria Pilar Arantes 26 de outubro de 2019 @ 13:39

      Querida Cláudia,

      É bom e consolador ver que empresas como a FORMUS mantém o pensamento elevado e centrado na tecnologia, porém sem eliminar a presença do mais sensível a todos os sentidos, o artesanal/natural, que creio que é o que todos sempre teremos em comum e nos define como humanos.
      Abraços saudosos! Pilar

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