Joana Vasconcelos

Eu tenho falado há algum tempo sobre estarmos vivendo uma espécie de 2º Movimento Arts & Crafts, aquelas bases idealistas que foram propostas no final do século XIX incialmente por William Morris (1834-1896), e que se espalharam por vários países da Europa continental e Estados Unidos (veja artigo aqui).

Enquanto que os artistas do Arts & Crafts do século XIX estavam assustados com a perda da funcionalidade e qualidade dos produtos feitos pela indústria (mais interessada no volume do que no bom resultado), nós, os que vivemos no primeiro quartel do século XXI, em todas as partes do mundo, estamos assustados é com a possibilidade da perda de identidade.

Neste “instintivo” 2º Movimento Arts & Crafts mundial a identidade de cada país, cidade ou mesmo o mais singelo povoado é exaltada quase que naturalmente como uma necessidade de afirmação da importância de se manter na memória e materializar nossa história, nossas raízes, os fazeres de nossos antepassados que moldaram nossa personalidade, nosso modo de vida, tantas coisas de nossa cultura e nossos valores. Felizmente estamos cada vez mais conscientes do quão preciosa é a diversidade, a beleza na diferença, a soma das partes.

Joana Vasconcelos (Fonte das fotografias: Instagram da artista).

Pois é somando as partes de espetaculares trabalhos em crochê, em tricô, de costura a mão que a artista plástica portuguesa Joana Vasconcelos (Paris, 1971) reafirma o valor do trabalho artesanal e da cultura regional em algumas de suas coleções e séries que já foram expostas nos museus mais importantes do mundo. Um trabalho que conta com a cooperação de dezenas de artesãs e artesãos, de cujas mãos hábeis são criadas as peças que compõem desde pequenos objetos às instalações gigantes e impressionantes idealizadas por Joana.

Joana é uma artista com uma capacidade criativa e produtiva impressionantes. Um criterioso senso de organização processual e logístico digno de uma grande administradora. Esta competência tão racional de Joana Vasconcelos é uma das partes de sua inteligência multidisciplinar que permite que obras que envolvem processos complexos sejam realizadas. Mas é a sua inteligência artística, emocional e criativa que dá vazão às suas ideias tão originais, ousadas e memoráveis.

Artesãs e artesãos da equipe de Joana Vasconcelos com a “mão na massa” (Fonte: Instagram da artista).

Olhar os trabalhos de Joana é um disfrute para os olhos e para a imaginação. Um sem-fim de detalhes para descobrir; obras que podes passar por dentro e em volta; formas que dão vazão à pareidolia e instigam a imaginação e os lados mais singelos de nossa criatividade. Ao mesmo tempo, o expectador é convocado à responsabilidade, e é levado a refletir sobre os impactos que nosso modo de viver gera na nossa sociedade e no mundo. A valorização da cultura de Portugal, mas também de outros países é explícita e ao mesmo tempo denunciatória: imigração, preconceito, radicalismo, feminismo, consumismo, vaidade são alguns dos duros temas conjugados com belíssimos trabalhos artísticos que podem unir festividade e humor como contraste. É como se fosse um “tapa com luva de pelica”. Mexe com tuas entranhas, mas como seu trabalho é lindo, super bem acabado e criativo, não encontras desculpas para fugir dele e instintivamente eres levado a refletir a respeito de sua mensagem de fundo.

A partir de 2002 Joana parece entrar de cabeça nesse mundo Arts & Crafts, e começa a incluir em muitas de suas obras trabalhos artesanais dos mais tradicionais como o tricô e costura de vestimentas típicas regionais, que dão forma a obras como “Blup” e “Burka”. Sobre esta última, Joana nos conta em seu site:

“Um corpo constituído por vários tecidos, sucessivamente sobrepostos, inspirado num traje regional português – as sete saias da Nazaré – é rematado, a partir do topo, por um último tecido: a burca, veste de tradição islâmica destinada a cobrir inteiramente a silhueta feminina. Este mesmo corpo é repetidamente sujeito a movimentos de ascensão lenta e sequente queda abrupta sobre um palco – como os movimentos da guilhotina ou do condenado à forca.”
Joana Vasconcelos

Veja o vídeo da instalação Burka clicando AQUI

Burka, 2002
Tecidos, ferro metalizado e termolacado, palco de MDF pintado, cabos de aço, poliuretano, sistema elétrico, motor, temporizador.
670 x 600 x 500 cm
Coleção MUSAC, Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y León, Leão.
(Créditos das imagens: www.joanavasconcelos.com)

Blup, 2002
Azulejos industriais, tricô de lã feito à mão, malha industrial, MDF
210 x 150 x 100 cm
Coleção Fleiss, Paris
(Créditos das imagens: www.joanavasconcelos.com)

Em 2004 inicia sua série “Valquírias”, um trabalho impressionante que chegou até 2019 com 15 instalações diferentes, uma por ano, uma para cada Valquíria. Neste trabalho a artista contou com artesãs e artesãos locais para confeccionar as peças que derem forma às suas obras, culminando no aspecto que, a meu ver, resgata este conceito mais puro do “Arts & Crafts” de William Morris e seus contemporâneos sobre o trabalho artesanal. Uma mensagem que chegou a diferentes países da Europa e ao EUA, expostas nos museus mais famosos. Joana nos fala sobre esta série em seu site:

“Estas personagens femininas da mitologia nórdica, encarregues de selecionar os mais bravos e valorosos guerreiros mortos em combate, sobrevoavam os campos de batalha montadas em cavalos alados com o objetivo de recrutar os futuros guerreiros de Odin, soberano do reino dos deuses. Suspensos a partir do teto, os enormes, estranhos e invulgares corpos têxteis das Valquírias de Joana Vasconcelos parecem também sobrevoar os espaços em prospecção de matéria nobre para tarefas divinas. Conhecedora da riqueza e da importância que o artesanato de Nisa atinge na sua máxima expressão, Joana Vasconcelos propôs, em estreita colaboração com as artesãs e artesãos locais, a criação de uma obra que reúne alguns dos melhores exemplares dos bordados e olaria pedrada do concelho. Deslocando estes objetos impares das suas habituais funções e subvertendo a familiaridade e domesticidade com que habitualmente nos são apresentados, Joana Vasconcelos reinterpreta, à luz da contemporaneidade, os valores estéticos evidenciados através das diferentes técnicas e temas característicos do artesanato nisense.”
Joana Vasconcelos

Joana Vasconcelos é uma artista contemporânea que retrata nosso tempo através de obras com uma qualidade que exprime seu respeito pelas pessoas e pela vida. Esbanja criatividade, competência e coragem na abordagem de seus temas, sem ferir, mas sabendo que alguns sairão tocados depois de contemplarem seus trabalhos.

Dez vivas para o fato de que a arte é cíclica, mas sempre se renova! Viva William Morris, e viva Joana Vasconcelos!