Certamente você já viu uma peça de mobiliário que se parece com outra vista antes. Ou um objeto que tivesse cores ou linhas lembrasse a outro objeto de outro lugar que você talvez nem se lembre onde. E quanto às pinturas, você já se perguntou por que o mesmo assunto pode ser representado de maneiras tão diferentes ao longo dos séculos, como uma cena marcante de um mártir cristão que séculos atrás foi representada com 20 flechas presas no peito, e 400 anos após ele é representado com apenas uma muito discretamente?
O historiador Fritz Saxl explica tudo isso. E seu estudo nos ajuda a entender os movimentos estéticos que nascem, morrem e revivem mais tarde com um novo aspecto, mas que ainda permite perceber a relação com seu ponto de origem.
A partir do estudo da obra iconográfica do Martírio de São Sebastião, faço uma exposição sobre a evolução iconográfica dessa obra, à luz dos estudos de Fritz Saxl, esperando que cada um consiga desdobrar este conhecimento para outras situações nas artes em design de interiores, mobiliário, etc.
Este trabalho foi apresentado para o tema “Iconografia”, para a faculdade de História da Arte da UNED, na qual sou acadêmica, e obtive nota 9,80 neste trabalho.
São Sebastião (século III d.C.) era de uma família nobre, da Gália, e antes de ser considerado um santo pela Igreja Católica na Idade Média, foi um oficial da guarda do imperador Diocesano e gozava de muito prestígio e confiança. Ele era cristão e por ter pregado a outros oficiais que se converteram à fé, caiu no desagrado do imperador que ordenou que ele fosse martirizado. O amarraram a uma árvore e o lhe dispararam várias flechas. Apesar disso, esse não foi o motivo de sua morte, como afirma a “Lenda Dourada”, referindo-se aos carrascos do mártir: “depois que ele foi flechado, o deixaram lá e foram embora”. Foi resgatado por mulheres piedosas, e depois de se recuperar falou novamente com o imperador sobre a perseguição aos cristãos. O imperador ficou furioso e ordenou que o matassem com paus e o jogassem na cloaca máxima de Roma.
Nas principais fontes que são os Atos dos Mártires, a Lenda Dourada e as passagens bíblicas se encontram elementos importantes que serviram como fonte de consulta a artistas em diferentes épocas. Na Bíblia existem numerosas passagens que falam das flechas como um sinal de força, proteção, vingança ou vitória de Deus (Salmo 127: 4; Salmo 45: 5; Salmo 38: 2; I Samuel 20:36; 2 Reis 13: 18; I Samuel 20:20; Lamentações 3:12; etc.). Também na Ilíada, a epopeia grega descreve Apolo atirando flechas infectadas com a praga sobre o campo grego durante a Guerra de Troia.
Na mitologia grega, o deus Apolo era considerado o deus da beleza. Além disso, ele era o deus dos atletas, porque instalou os Jogos Pito, que destacam seus bons atributos físicos atléticos. No mito grego, pelo menos duas vezes ele aparece usando o arco e a flecha para realizar proezas importantes: quando ele matou a cobra Píton, depois de ser enganado por uma ninfa, e quando matou Ticio a flechadas por ter abusado de sua mãe. Ele era o deus das flechas por excelência.
Em pelo menos dois momentos importantes do mito, a árvore aparece em sua história. O primeiro a se vingar de Marsias quando desafiou Apolo sobre suas habilidades musicais. Saindo vencedor, Apolo aplicou a punição a Marsias, esfolando-o vivo e pendurando-o de uma árvore para perecer. O segundo refere-se a Daphne, uma ninfa por quem Apolo se apaixonou, mas cujo seu pai impediu de se relacionar com o deus e, por esse motivo, transformando-a em um loureiro.
Entre seus infelizes relacionamentos amorosos, Apolo se apaixonou por Jacinto, vítima da vingança do deus do vento Bóreas, que o matou durante uma prática de arremesso de discos em que Jacinto foi atingido pelo disco desviado de sua trajetória por Bóreas e morreu.
Para a fé cristã, São Sebastião é o símbolo da resistência, pois ficou gravemente ferido e não morreu. O corpo glorioso é o corpo que a alma viu após a ressurreição e o julgamento final. É por isso que o mártir aparece quase sempre representado na época de seu primeiro martírio, do qual ele saiu vivo. O devoto que olha para as imagens ou quadros em que seu sofrimento é explícito se identifica e acredita que a ele, o devoto, coisas terríveis podem acontecer, mas que sairá vitorioso. Ele também é considerado o santo protetor contra a praga (lembrando Ilíada). A tradição atribui à sua intercessão o fim da praga que devastou Roma em 680. E parece que depois disso São Sebastião foi considerado advogado contra pragas e outras doenças infecciosas. Ele é o terceiro patrono de Roma, depois de Pedro e Paulo.
O ícone foi amplamente representado e passou por muitas mudanças ao longo dos séculos. Nas diferentes representações ao longo do tempo, percebe-se a diferença entre quem não buscou a beleza plástica, mas o misticismo, de acordo com o seu tempo.
Na Idade Média, é valorizado o fato de São Sebastião não ter renunciado à sua fé, apesar de todo martírio sofrido, e o milagre de seu corpo resistir a todas as feridas causadas pelos flechaços. As representações valorizam a expressão facial do santo em uma atitude de resignação, olhando para o céu que se abre para a eterna beleza da divindade que o acolhe no martírio.
Como pode ser visto na figura 1, São Sebastião aparece com o corpo coberto de flechas e cercado por seus carrascos. Nesta obra, se pode ver os escritos de Jacobus de Voragine, na Lenda Dourada, que diz que “ele se torna um porco-espinho por causa da quantidade de flechas”. Foi a primeira concepção a seguir quase que fielmente este texto. Os atributos da beleza física não importam, mas sim o sofrimento e a resistência do mártir. Da mesma forma, nas figuras 2 e 3, São Sebastião é representado com os mesmos ideais estéticos, sem nenhuma conotação erótica ou valorização de sua beleza física.
Na metade do século XV ocorre a grande mudança na representação do mártir. A Idade de Ouro de São Sebastião ocorre entre a segunda metade do século XV e a XVI, com o Renascimento. Como a pesquisadora Maria Condor disse em sua palestra ” São Sebastião, o Apolo Cristão”, na iconologia o santo “vai do sagrado ao profano; São Sebastião rejuvenesce, despe-se, torna-se uma escultura enquanto ainda é uma pintura, torna-se pagão, sedutor, homoerótico, mas ainda permanecendo um santo. Torna-se um paradigma de beleza enquanto permanece um objeto de adoração”. O interesse dos artistas renascentistas pelos ideais clássicos suscita uma intensa pesquisa para obter a expressão de uma beleza ideal, uma beleza antiga. Elementos significativos do mito grego são resgatados, além das características típicas da arte clássica, como o corpo atlético de formas e proporções perfeitas, os elementos construtivos da arquitetura clássica presentes na cena de fundo ou emoldurando o santo (mas frequentemente em situação de ruína, refletindo a ideia de ruína como uma apresentação da superação do mundo clássico pelo cristianismo), a perspectiva altamente valorizada, as características faciais típicas da escultura clássica. Outro aspecto foi o resgate das características de personalidade do personagem mítico e, no caso de São Sebastião, o Apolo que sempre tentou mulheres e homens, dando origem à figura andrógina e altamente sensualizada. O corpo nu que anteriormente se mantinha no segundo plano em relação a todo o fardo do sofrimento imputado no martírio, agora ocupa o centro do palco. O nu era para o artista renascentista sua maneira de mostrar, de expor sua habilidade e seu conhecimento da escultura antiga. O que eles aprenderam pintando Apolo e Vênus, aplicaram nesse exercício de pintar os santos, por exemplo, na Figura 4.
Através do exemplo do tema Martírio de São Sebastião, o que Saxl disse em seu conceito de “continuidade e variação” pode ser percebido com muita clareza. O ciclo de vida de um ícone. Do tipo que representa a resistência da fé cristã, passado por mutações nas quais o aspecto místico, apesar de presente, dá origem ao carnal, até chegar ao ponto em que a referência total do significado do martírio está quase perdida, como pode ser percebido na Figura 5.
Nos séculos XVIII e XIX, há o declínio do tema, porque não há mais a peste. O mártir quase não é mais representado. Antes desses séculos, já havia um São Sebastião desprovido de todo caráter místico. Citando Maria Condor mais uma vez, “de mártir não tem quase nada. É um ícone homoerótico, parece cada vez mais jovem, sem carrascos, laico, cada vez menos flechas e menos feridas. Ele não tem nada além de uma flecha. Porém a flecha bem no coração e nas mãos implica que existe uma ambiguidade entre as flechas do martírio e as flechas do amor, tornando-se quase cupido (pois, inclusive, há iconografia de cupidos amarrados em uma árvore e mulheres jogando flechas para se vingar)”.
Se não fosse a continuidade da veneração do santo pela Igreja Católica, poderíamos considerar, de acordo com o “ciclo de vida das imagens” de Saxl, a morte de uma imagem?
Por: Arqta. Maria Pilar Arantes
Bibliografia:
FRANCO LLOPIS, B.; MOLINA, Á.; VIGARA ZAFRA, J. A.: Imágenes de la tradición clásica y cristiana. Una aproximación desde la iconografía. Madrid, Editorial Universitaria Ramón Areces, 2018.
Outras fontes de consulta:
- Ciclo de conferencias del Museo del Prado. Conferéncia:” San Sebastián, el Apolo cristiano”, impartida por María Condor el 13 de enero de 2018. – disponible en Youtube, en el canal del museo, en: https://www.youtube.com/watch?v=1-jAVBx1fyY
- https://www.museodelprado.es/coleccion/
- https://museodiocesano.es/2012/01/19/20-de-enero-san-sebastian/
Origem das imagens:
https://www.museodelprado.es/coleccion/
https://www.museothyssen.org/coleccion/artistas/bronzino/san-sebastian
https://www.nationalgallery.org.uk/